As violações de direitos geradas pelas diferentes intervenções na cidade e no estado, responsáveis por uma “gentrificação” deliberada, são demonstrações cabais da falência dos governos como defensores do interesse público, porque estão subordinados aos ditames privados. Em meio às dezenas de obras e mega-empreendimentos, o Rio de Janeiro é objeto de um jogo de cartas marcadas, onde quem ganha – e muito – são algumas empresas e políticos. E quem perde é a população. O poder econômico além de dar as cartas virou o dono do baralho, ditando as regras do jogo, onde a banca é garantida pelo dinheiro público.
A primeira constatação é que o jogo está sendo jogado por muito poucos e grandes jogadores. Destacam-se aí as empreiteiras, ou “quatro irmãs”, numa referência às petroleiras dos anos 1970: Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Camargo Correa. Se tomarmos 20 dos maiores empreendimentos no Rio, em sua grande maioria no setor de mobilidade urbana, verificamos que essas empresas estão em todos, atuando, na maioria dos casos, de modo consorciado.
No Rio de Janeiro outros grupos empresariais também são beneficiados com esta política: o Grupo X, do empresário Ike Batista, hoje em desgraça financeira; Organizações Globo (TVs e Radiodifusoras); outras empreiteiras do ramo imobiliário como a Queiroz Galvão; Brookfield; Cyrela; Rossi; Carvalho Hosken; João Fortes; Carioca Nielsen; Delta. Do mesmo modo, as intervenções em função da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas (organizada pelo grupo Rio 2016) também incluem projetos de várias ordens como aperfeiçoamento de um centro de monitoramento da cidade, com câmaras e outros aparatos técnicos; um Centro de Tratamento de Resíduos (CTR) ; obras para controle de enchentes em áreas específicas da cidade; projetos de melhoria de residências nas favelas cariocas; além de a construção de equipamentos de lazer em praças e outras instalações para prática de esporte.
Na tabela, podemos ver a presença direta ou indireta destas empresas. O controle da empreiteira sobre o empreendimento foi indicado pela letra C na tabela e/ou através da realização de obras para o projeto em questão, indicado pela letra O – os dados se referem à situação a partir dos anos 90.
Empreendimentos |
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Mobilidade urbana |
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C/O |
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O |
C/O |
O |
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C |
C |
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C |
C |
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C |
C |
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Barcas S/A (navegação fluvial) |
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C |
C |
VLT no Centro do Rio |
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O |
O |
O |
SuperVia (linha férrea) |
C |
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O |
O |
O |
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C/O |
C/O |
C/O |
C/O |
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O |
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O |
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C |
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Demolição da Perimetral/Abertura da Via Binário |
O |
O |
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Estádios e aparelhos esportivos |
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Estádio Maracanã |
C/O |
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O |
C/O |
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C/O |
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C/O |
C/O |
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Estádio Engenhão |
O |
O |
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Obras em favelas |
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PAC Manguinhos |
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O |
PAC Complexo do Alemão |
O |
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C/O |
O |
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Além desta presença ostensiva que sugere um revezamento, uma espécie de rodízio entre elas na realização de obras e/ou controle de empreendimentos pela cidade, chama também a atenção o fato de que elas estão juntas em obras viárias como o Arco Metropolitano e a Transolímpica, ligando a zona oeste da cidade, a Barra da Tijuca, lugar de concentração de especulação e grandes empreendimentos imobiliários e à Avenida Brasil, zona norte da cidade e com grande fluxo de veículos. Neste caso, trata-se do Consórcio Rio Olímpico, formado pelas empesas Odebrecht, Invepar (OAS) – controladora também do Metro Rio – e CCR (Andrade Gutierrez e Camargo Correa), que controla ainda a Via Dutra, Via Lagos, Ponte Rio-Niterói e Barcas SA. As “quatro irmãs” estão igualmente presentes no Consórcio VLT Carioca, responsável pela obra do VLT no Centro do Rio. Já no caso da Transcarioca há uma partilha das obras entre elas, com o trecho Barra à Penha, ficando a cargo da Andrade Gutierrez e o trecho da Penha ao Aeroporto Internacional, sob a responsabilidade da OAS.
Embora atuem claramente de modo consorciado e combinado, elas também se apresentam por vezes como concorrentes em licitações públicas. Atuando em conjunto no Consórcio Porto Novo, responsável pelas obras e serviços na zona portuária do Rio, OAS e Odebrecht disputaram, recentemente, a concessão para administrar o Estádio do Maracanã – reformado, a um custo bilionário, pela mesma Odebrecht em aliança com a Andrade Gutierrez. A licitação ganha pela Odebrecht e IMX está sendo questionada por uma Ação Civil Pública do Ministério Público do Rio. São dois principais questionamentos. Um é que a IMX, uma das concorrentes e vitoriosas na licitação, foi a responsável pelo estudo de viabilidade do projeto e, portanto, teve acesso privilegiado a informações, que não foram disponibilizados para os demais interessados na licitação. Outro questionamento é que não caberia ao Governo do Estado, no ato da concessão, autorizar a exploração comercial do entorno do Maracanã, já que as receitas provenientes apenas da gestão do estádio já garantiriam a viabilidade financeira do projeto. Como a autorização foi dada, caberia ao Governo, argumenta o MP, elevar o valor da outorga dos atuais R$ 5 milhões para algo próximo a R$ 30 milhões/ano.
O jornal Folha de São Paulo, em matéria de 18 de março de de 2010, intitulada “Licitação do PAC no RJ tem sinal de acerto entre rivais”, aponta indícios fortes de irregularidades na licitação das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nas favelas do Complexo do Alemão, Manguinhos e Rocinha, envolvendo as empreiteiras Odebrecht, Andrade Gutierrez e Querioz Galvão, ganhadoras das licitações em cada uma destas comunidades, respectivamente. Ficou comprovado que um documento feito a pedido da Odebrecht para habilitar-se à licitação do PAC no Complexo do Alemão foi o mesmo utilizado pelas outras duas empreiteiras nas licitações para Manguinhos e Rocinha.
O domínio do jogo pelas “quatro irmãs” é de tal forma patente e evidente que levanta suspeição sobre possível formação de cartel, tipificado como infração administrativa sujeita a multas e como crime sujeito a prisão conforme o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. No caso do Rio de Janeiro, é notória, como demonstrado, a presença destes indícios nas licitações de grandes obras.
Outro indício deste domínio sobre o mercado são os abusos cometidos pelas empresas vencedoras das licitações, que realizam invariavelmente revisões nos orçamentos das obras, elevando seus preços muito acima do valor licitado. O caso novamente da reforma do Maracanã é emblemático, que teve seu orçamento duplicado ao longo da obra.
Os recursos públicos, seja por meio do orçamentário público, isenções fiscais, financiamento pelos bancos públicos, notadamente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O dinheiro público alimenta uma concentração de poder econômico que, por sua vez, se alimenta de mais dinheiro público. Há também um claro interesse de partidos e políticos aliados desses atores. Nos últimos dez anos, somente as “quatro irmãs” despejaram EUR$ 154 milhões nas campanhas eleitorais. Estudo recente[1] sobre as contribuições para a campanha de candidatos a Câmara dos Deputados em 2006 e seu retorno em contratos de obras públicas, constata que para cada real doado, a empreiteira recebeu em média 6,5 vezes o valor na forma de contratos de obras públicas. A considerar pelas cifras multibilionárias dos 20 empreendimentos aqui listados, a taxa de retorno para as empreiteiras no caso do Rio de Janeiro é certamente muito mais expressiva.
Do ponto de vista político-institucional, o PMDB, principal partido aliado do governo, aparece como o principal responsável pela gestão da cidade e do estado do Rio de Janeiro. O atual governador do Rio de Janeiro e os partidos aliados do governo estadual foram amplamente financiados nas últimas eleições por empresas que se beneficiaram com sua gestão de preparação da cidade para a Copa e Olimpíadas. Somente o empresário Eike Batista doou para a campanha EUR$ 231 mil e quatro empreiteiras gastaram juntas EUR$ 2,3 milhões . Ao todo foram mais de EUR$ 3,2 milhões repassados para partidos da base aliada do atual governador.
[1] Os pesquisadores analisaram as doações de campanha para candidatos do PT à Câmara dos Deputados em 2006. BOAS, Taylor; HIDALGO, F. Daniel; RICHARDSON, Neal. The spoils of victory: campaign donations and government contracts in Brazil. Califórnia, 2011.